ETEs descentralizadas III – Diversidade de composições de esgotos sanitários

Bem-vindos novamente à série sobre soluções de saneamento descentralizado! Quem acompanhou nossas publicações anteriores, sabe que estamos compartilhando experiências sobre o tratamento descentralizado para três situações (blog I): (1) áreas residenciais, (2) empreendimentos não residenciais, e (3) pequenos municípios. No blog II explicamos como as vazões dessas três situações diferem de um “esgoto comum”. Agora, vamos explorar a composição diferenciada do esgoto e as respectivas consequências para a eficiência de tratamento a ser alcançada. Esperamos que nossas experiências possam contribuir para a realização de soluções eficazes de saneamento descentralizado. Aproveitem a leitura!

Qual seria a composição do esgoto “comum”?

Assim como as vazões (blog II), as concentrações de esgotos municipais também se mantêm dentro de faixas típicas. No Brasil, existem dados bem embasados sobre a composição dos esgotos municipais que definem o dimensionamento de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). Os projetos são baseados principalmente nas cargas diárias per capita enquanto a concentração de esgoto resulta da diluição com a água utilizada. Baixo consumo de água produz esgotos mais concentrados, enquanto o alto consumo (ou infiltrações na rede de esgoto) aumenta a vazão do esgoto e reduz sua concentração.

A tabela 1 (adaptada de Von Sperling, 2005) mostra as faixas típicas de cargas e concentrações para cinco parâmetros relevantes. Deve ser mencionado que o Nitrogênio Amoniacal, que faz parte de Ntotal (conforme nessa publicação), chega tipicamente a 75 a 80% de valores de Ntotal. Ou seja, em comparação com o Ntotal, os valores para Nitrogênio Amoniacal na tabela 1 podem ser subestimados.

Tabela 1: Características físico-químicas dos esgotos sanitários no Brasil (Sperling, 2005, adaptado)

A carga per capita (g/hab.dia) presente na tabela 1 corresponde à unidade de “Equivalente de Habitante“, utilizada para calcular a contribuição de esgotos provenientes de situações não residenciais. Esse conceito, previsto na NBR 13969/97, é atribuído, por exemplo, aos números de funcionários de uma fábrica ou à ocupação máxima de um shopping center, hospital, hotel ou colégio. Ou seja, cada funcionário, cliente, hóspede ou estudante nestas situações representa uma determinada fração do Equivalente de Habitante, mas, mantendo-se constante a relação entre os parâmetros, que de acordo com a tabela 1 é de 100 DQO : 50 DBO : 8 N : 3,5 NH4-N : 1 P.

Este conceito é originário de redes municipais maiores e funciona para determinar as descargas nesses sistemas, onde os efluentes de diferentes atividades, tanto residenciais como não residenciais, são misturados, como explicado no blog anterior (blog II). No entanto, seria possível utilizá-lo em situações descentralizadas, onde cada fábrica, shopping center ou hospital possui seu próprio sistema de tratamento de esgoto?

 

Composições e concentrações de esgotos sanitários nas situações descentralizadas

Com base em nosso banco de dados operacionais e em pesquisas realizadas, selecionamos três casos exemplares para identificar a composição e faixa de concentrações dos esgotos sanitários que chegam às estações de tratamento descentralizadas em diferentes situações.

ETEs municipais de pequeno porte, exemplo ETE para parque residencial:

A estação de tratamento de esgoto (ETE) analisada nesta pesquisa atendia uma área residencial com 3.500 habitantes, utilizando um reator SBR da Rotária. Nesse caso, todas as residências possuem uma fossa séptica própria, o que significa que a rede condominial coleta um esgoto que já passou por um pré-tratamento.

Como resultado e apresentado no Gráfico 1, as concentrações de DQO e DBO são reduzidas em comparação com o “esgoto comum” da Tabela 1. A concentração média de DQO foi de 372 mg/L, variando entre 200 e 600 mg/L, enquanto a DBO teve média de 175 mg/L, variando entre 90 e 300 mg/L.

Em comparação, os nutrientes N e P do Gráfico 1 apresentaram concentrações elevadas. O Nitrogênio Total teve média de 61 mg N/L e o Nitrogênio Amoniacal de 48 mg N/L, ou seja, 79% do Ntotal, porcentagem comum, conforme explicado antes. O Fósforo Total teve média de 8,1 mg P/L, com alta variação entre 2,3 e 14,8 mg P/L.

Gráfico 1: Concentrações de DQO e DBO (eixo esquerdo) e de Nitrogênio Amoniacal; Nitrogênio Total e  Fósforo total (eixo direito) de esgotos sanitários de um parque residencial (34 amostras durante 4 meses)

A composição desse esgoto segue uma relação de 100 DQO : 50 DBO : (17 Ntotal) : 13 NH4-N : 2,2 P. A elevada contribuição relativa de Nitrogênio e Fósforo não deve apresentar problemas para os processos básicos de tratamento, no entanto, em casos de exigências mais elevadas, a baixa relação de DBO : N limitaria a remoção de nitrogênio por meio da desnitrificação, e as altas variações na concentração de fósforo (650% entre valores mínimos e máximos) tornariam difícil cumprir limites rigorosos de sua remoção.

Deve-se ressaltar que para áreas residenciais, a mudança da relação dada na Tabela 1 em favor de Nitrogênio e Fósforo é bastante típica e, além disso, as variações entre valores mínimos e máximos de cada parâmetros tendem a aumentar quando o número de habitantes atendidos é menor.

ETE para empreendimentos, exemplo shopping center:

Neste caso, o esgoto sanitário é composto principalmente por efluentes da praça de alimentação e de banheiros de serviço higiênico de shopping center. Para o tratamento desses efluentes, utiliza-se dois reatores SBR da Rotária, sendo a caixa de gordura o único pré-tratamento empregado.

Todos os parâmetros do Gráfico 2 apresentam altíssimas concentrações e variações. Por exemplo, a concentração média de DQO é de 3.350 mg/L, podendo variar entre 1.000 e quase 12.000 mg/L. A concentração média de DBO5 é de 1.430 mg/L, e varia entre 500 e 5.500 mg/L. O teor de Nitrogênio Amoniacal médio é de 96 mg N/L (variando entre 50 e 180 mg N/L) e a concentração média de Fósforo Total é de 23 mg P/L (variando entre 5 e 50 mg P/L).

Gráfico 2: Concentrações de DQO e DBO (eixo esquerdo) e de Nitrogênio Amoniacal e Fósforo Total (eixo direito) de esgotos sanitários de um Shopping Center (50 amostras mensais, resultados atualizados, fonte original)

A relação média entre DQO, DBO, NH4-N e P é de 100 : 42 : 3 : 0,7 indica uma menor contribuição relativa de Nitrogênio Amoniacal, Fósforo Total e DBO, quando comparado com a tabela 1.

No entanto, o que se mostra realmente crítico neste caso são as altas concentrações de todos os parâmetros, que neste tipo de empreendimento muitas vezes contribuem para cargas maiores do que as previstas em projeto – conforme explicado no blog II.

Outro aspecto crítico diz respeito às grandes variações nas concentrações desse tipo de esgoto sanitario, que exigem a aplicação de tecnologias capazes de absorver e equilibrar os picos. Com base em nossa experiência, entre os diversos tratamentos mecanizados de processos biológicos, o reator SBR (lodo ativado de batelada sequencial) se destaca como a opção mais adequada para atender a esse critério.

ETE para empreendimentos com esgoto sanitário gerado exclusivamente por banheiros:

Em situações em que os efluentes sanitários são originados principalmente pelo uso dos banheiros de uso público, sem a presença de restaurantes ou cozinhas para o preparo de refeições, a composição do esgoto pode se tornar extremamente uniforme.

No Gráfico 3 são apresentados os resultados da análise de esgoto de dois empreendimentos. O objetivo é mostrar que, mesmo em condições semelhantes, a composição do esgoto pode variar significativamente. Ambos os empreendimentos utilizam Wetland da Rotária e as amostras foram coletadas após a passagem pelo Tanque Séptico.

O primeiro caso se refere ao esgoto sanitário gerado por uma fábrica com 150 funcionários, enquanto o esgoto do segundo caso é proveniente de um centro comercial. Embora ambos os casos não possuam instalações para preparação de alimentos, o centro comercial oferece refeições pré-fabricadas.

No primeiro caso, as concentrações de matéria orgânica, representadas pelos parâmetros DBO e DQO, são muito baixas, com médias de 95 mg/L e 280 mg/L, respectivamente. Por outro lado, as concentrações de Nitrogênio Amoniacal (84 mg N/L) e Fósforo Total (8,9 mg P/L) são elevadas e apresentam uma variação de até 300% entre os valores mínimos e máximos.

No segundo caso, o esgoto apresenta-se mais concentrado, com médias de DBO e DQO de 230 mg/L e 580 mg/L, respectivamente. As concentrações de Nitrogênio Amoniacal (172 mg N/L) e Fósforo Total (13,7 mg P/L) apresentam uma variação de até 500% entre os valores mínimos e máximos.

Gráfico 3: Concentrações de DQO e DBO (eixo esquerdo) e Nitrogênio Amoniacal e Fósforo Total (eixo direito) de esgotos sanitários de uma fábrica (22 amostras mensais) e de um centro comercial (18 amostras semestrais)

No primeiro caso, a relação média entre DQO, DBO, NH4-N e P é de 100 : 33 : 30 : 3,1, enquanto no segundo caso é de 100 : 57 : 29 : 2,4 indicando a composição unilateral do esgoto com excesso crítico de Nitrogênio e Fósforo e altas variações na concentração desses parâmetros.

No entanto, no primeiro caso, foi exigida a redução de Fósforo pelo tratamento a valores inferiores a 4 mg/L, o que foi alcançado por meio do processo de pós-precipitação no efluente do Wetland.

Além disso, é importante destacar que o Wetland de fluxo vertical da Rotária é capaz de oxidar o Nitrogênio Amoniacal por meio do processo de nitrificação e pode realizar também a desnitrificação. No entanto, o excesso de Nitrogênio limita o potencial da eficiência desses processos.

 

Conclusões referente às composições de esgoto sanitário nas situações descentralizadas

A composição do esgoto em situações descentralizadas pode variar amplamente da faixa comum, especialmente em empreendimentos não residenciais, como shopping center, mercados, hospitais, fábricas, campus universitários. Em geral vale: 

  • concentração de DBO e DQO tende a ser mais elevada  quando há a presença de efluentes provenientes de serviço de alimentação.
  • Elevadas concentrações de Nitrogênio e Fósforo (Ntotal / Nitrogênio Amoniacal e Ptotal / Ortho-Fosfato) esperam-se em situações em que banheiros de uso público (urinas) contribuem ao esgoto. 

Uma outra particularidade é a alta variação nas concentrações dos parâmetros que pode ocorrer tanto em empreendimentos não residenciais quanto em situações residenciais. Assim como anteriormente concluído para a vazão vale:

Quanto menor a rede coletora e menos diversificadas forem as atividades que produzem o esgoto, maiores serão as variações nas concentrações. Esses são fatores que devem ser considerados na escolha e dimensionamento de tecnologias e nas medidas operacionais a serem adotadas.

Mesmo que as ETEs de pequeno porte exijam apenas remoção básica de matéria orgânica (DBO/DQO), a preocupação recai sobre as altas variações nas concentrações, pois a metodologia de amostragem exigida pela legislação brasileira requer que a ETE atenda com amostragem simples, ou seja, a qualquer momento de sua operação. Nesta base, concluímos com as seguintes observações: 

i)   As tecnologias baseadas em processos biológicos, comumente aplicadas para tratamento de esgotos sanitários, têm certa capacidade de se adaptar às altas concentrações e de equilibrar picos repentinos. Nossa experiência na Rotária mostra que o reator SBR e o Wetland de tratamento têm a melhor capacidade nesse sentido, mas com certeza é um assunto complexo que merece uma discussão mais aprofundada que vamos realizar na continuação.

ii)  Em relação aos parâmetros de Nitrogênio e Fósforo, é importante destacar que tanto as elevadas concentrações como as altas variações podem tornar economicamente inviável cumprir exigências elevadas de eliminação desses parâmetros. Isso porque seria necessário operar o sistema de tratamento com controle completo sobre a vazão, as concentrações de parâmetros em questão, além de OD; pH e outros parâmetros, e realizar ainda sobre essa base medidas dinâmicas de operação.

iii)  Por essa mesma razão, para os casos de ETEs de pequeno porte não seria viável substituir o tratamento biológico pelo tratamento físico-químico, pois as altas variações na concentração de esgoto sanitário não permitiriam dosar os agentes químicos de forma adaptada, sem contar que neste caso a formação de lodo não estabilizado significaria ainda um problema econômico adicional.

Em breve, compartilharemos mais detalhes referentes às tecnologias e medidas operacionais apropriadas para lidar com a realidade do saneamento descentralizado. Fiquem atentos!

 

Fontes citadas:

(ABNT) NBR 13969. SET 1997. Tanques sépticos – Unidades de tratamento complementar e disposição final dos efluentes líquidos – Projeto, construção e operação.

Tabele 1: Von Sperling, M, 2005: Introdução à qualidade das águas e ao tratamento de esgoto. 3. ed. Belo Horizonte, Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental. UFMG, 2005. 452 p

Gráfico 2, fonte original: Platzer, C.; Hoffmann, H.; Miglio, R. M.: Long term experiences with dimensioning and operation of vertical flow constructed wetlands in warm climate regions of South America, IWA Specialist Conference on Wetland Systems for Water Pollution Control, 11/2016, Gdańsk, Poland acessível neste link