ETEs descentralizadas II – Vazões de efluentes sanitários e suas variações

Bem-vindos à continuação da nossa série sobre soluções de saneamento descentralizado! Como explicado no blog anterior, encontrará análises sobre três diferentes aplicações de tratamentos de esgoto sanitário incluindo (1) áreas residenciais, (2) empreendimentos e (3) pequenos municípios. Neste blog, abordamos a questão se as vazões dos efluentes sanitários dessas três aplicações realmente diferem de um “efluente sanitário comum“. Os resultados podem ser surpreendentes e ajudarão a entender a importância de considerar essa diferença nos projetos e na operação de sistemas de tratamento (ETE: Estação de Tratamento de Esgoto). Leia mais para descobrir!

 

Como se comportam as curvas de vazões de um esgoto “comum”?

Embora não exista um tipo único de esgoto que seja idêntico em todas as cidades, o esgoto municipal coletado em redes de grande área de atendimento apresenta comportamento semelhante. Com base nesta semelhança estabeleceram-se diretrizes comuns para os projetos de saneamento.

Em geral, a vazão do esgoto varia em torno de um valor médio para o qual a ETE é dimensionada. As curvas ou hidrogramas diários das vazões que chegam à ETE resultam das atividades na área de atendimento da rede coletora ao longo de 24 horas. Além disso, a vazão pode variar em função dos dias da semana ou até da época do ano.

Para que a ETE possa absorver os picos de vazão, é utilizado um fator de 1,6 a 1,8 sobre o valor médio em seu dimensionamento. Esse fator é composto pelos fatores 1,2 (k1 – variação máxima diária) e 1,5 (k2 – variação máxima horária), conforme NBR 9649.

No gráfico 1 é apresentado um exemplo das vazões diárias médias mensais de uma ETE real de porte médio (110 L/s). Ao longo do dia, a vazão que chega nesta ETE aumenta entre as 10h e 16h e permanece elevada até as 21h. Mesmo os picos mais elevados de até 150 L/s, registrados em fevereiro e março (influenciados pela época de chuvas), não ultrapassam o fator de 1,4 em relação à vazão média.

 

Gráfico 1: Vazões diárias (média mensal) de uma ETE de porte médio (110 L/s) com medidor de vazão (fonte própria)

 

Embora seja apropriado então usar um fator de variação de 1,6 a 1,8 para áreas amplas de atendimento, onde as atividades urbanas são diversas e equilibram as descargas na rede pública, é preciso considerar se essa métrica é adequada para os tratamentos de menor porte. Será que essas ETEs seguem o mesmo padrão?

 

Como então se comportam as variações de vazões de esgoto coletado em redes menores ou nos tratamentos individuais?

A norma NBR 12209 indica que as ETEs de pequeno porte devem adotar coeficientes de pico de vazão superiores a 1,8, porém não há especificação de uma faixa recomendada. Além disso, a falta de monitoramento contínuo (24 horas) das vazões dificulta a avaliação dessas ETEs.

Com o intuito de subsidiar nossa experiência operacional, apresentamos um modelo padrão utilizado para simulações hidráulicas de sistemas de saneamento na Alemanha, país que possui conhecimento detalhado sobre as vazões em ETEs de menor porte. Adicionalmente, incluímos dois casos de monitoramento das vazões diárias em ETEs que atendem empreendimentos comerciais.

 

ETEs municipais de pequeno porte e ETE para áreas residenciais:

No gráfico 2, originado do Instituto alemão ITWH, são comparadas as curvas de vazões diárias para três diferentes portes de ETEs em relação ao fator de variações (vazões relativas). É importante ressaltar que no Brasil, o “porte pequeno” pode incluir ETEs de até 60 L/s. Ou seja, as três curvas do gráfico 2 da Alemanha, apresentam diferenças mesmo dentro da faixa de ETE de porte pequeno no Brasil.  

Gráfico 2: Vazão relativa diária (24 h) de esgoto diferenciado pelos 3 portes das ETEs (fonte: ITWH, Alemanha, 2009)

Curva amarela: 10.000 – 50.000 habitantes; parecida com o gráfico 1 (ETE de 110 L/s), mas, com pico de meio dia já um pouco mais elevado de fator 2,0 e menor contribuição na madrugada.

Curva preta: 5.000 – 10.000 habitantes; o pico de meio dia chega ao fator 2,4 e há picos mais acentuados entre 6h e 8h e entre 18h e 20h, na noite a vazão é zerada durante 2 horas.

Curva roxa: < 5.000 habitantes; picos mais acentuados, o maior no meio dia corresponde ao fator 3,0, os outros chegam ao fator 1,9. Durante a noite passam até 4 horas sem contribuição.  

 

Portanto, quanto menor a ETE, maiores são as variações na vazão e nos picos hidráulicos devido às atividades por quais os esgotos são produzidos estarem cada vez mais sincronizadas. Além disso, durante a madrugada, enquanto a ETE de porte médio (gráfico 1) continua a receber entre 60% e 70% da vazão média, as ETEs menores podem passar horas sem qualquer contribuição. Em casos de residências nas praias e outras regiões turísticas, as variações diárias podem ser ainda maiores e podem ocorrer dias ou semanas sem contribuição.

Para garantir o bom funcionamento das ETEs de pequeno porte, é fundamental levar em consideração essas particularidades da vazão. Algumas tecnologias, por exemplo, foram desenvolvidas para as ETEs de maior porte e, embora sua adaptação a ETEs menores seja tecnicamente possível, pode contradizer sua economia. Um exemplo típico é a tecnologia UASB/RAFA, reatores compactos e econômicos na construção, mas tanto os picos de vazão alta como os tempos elevados da espera sem contribuição resultam na perda da sua biomassa.

Portanto, é essencial avaliar as opções de tecnologias para escolher a solução mais adequada para a realidade específica da ETE de pequeno porte.

 

ETE para empreendimentos, exemplo supermercado:

No caso de empreendimentos não residenciais, como shopping centers, fábricas, campos universitários e outras situações que comumente são caracterizadas pelos turnos de presença, horários de funcionamento e até férias coletivas, as variações nas vazões são ainda maiores.

No gráfico 3 é apresentado o exemplo da vazão diária de esgoto de um supermercado durante um mês. A vazão diária varia entre 4 m³/dia e 34 m³/dia, com picos altos, porém não uniformes, principalmente de terça a sexta-feira, e baixas contribuições aos fins de semana.

Gráfico 3: Vazão diária (m³/dia) de um supermercado projetado para 8 m³/dia,
ETE com reator SBR da Rotária (resultados atualizados, fonte original
)

 

Esta ETE foi projetada para tratar uma vazão média de 8 m³/dia, no entanto, durante o mês avaliado, a vazão média alcançou 11,2 m³/dia (13,7 m³/dia nos dias úteis). Essa sobrecarga hidráulica já pode causar problemas para algumas tecnologias de tratamento, mas o maior desafio são os picos horários criados devido à produção de esgoto estar concentrada no horário de trabalho desse supermercado, o que leva a picos horários ainda muito mais altos do que o apresentado no gráfico 3.

A tecnologia de lodo ativado de fluxo contínuo, comumente empregada nessas aplicações, acaba falhando na operação diante de picos hidráulicos elevados. Isso ocorre porque o volume do decantador é dimensionado para vazões médias, o que leva, repetidamente, à perda da biomassa junto com o efluente. O reator SBR (lodo ativado por batelada sequencial), sendo aplicado neste caso, apresenta maior flexibilidade em casos de variações de vazão, pois o tempo de sedimentação se mantém sempre estável. Entretanto, em situações de sobrecarga elevada, ainda combinada com o aumento na concentração do esgoto, a eficiência do SBR também pode ser afetada se prolongada por muitos dias.

 

ETE para empreendimentos, exemplo centro comercial:

O aumento repentino de vazão, decorrente de atividades não planejadas no projeto, é realidade comum para empreendimentos desse tipo. Por outro lado, também pode ocorrer o oposto: ETEs planejadas para fim de plano de ocupação que permanecem anos com pouca ou nenhuma vazão.

No exemplo apresentado no gráfico 4, observamos ambos os extremos: a ETE foi dimensionada para 20 m³/dia e só chegou perto de sua capacidade 5 anos após o início da operação (linha verde, com média de 18 m³/dia, variando entre 4 e 30 m³/dia). No entanto, após mais de 1,5 anos, a vazão diária chegou a 74 m³/dia (linha azul, média de 39 m³/dia), mantendo-se baixa apenas no fim de semana. 

Gráfico 4: Vazão diária de um centro comercial, projetado para 20 m³ /d, ETE com Wetland da Rotária, transformado depois em Wetland aerado (fonte original)

 

Nesse caso, o aumento da vazão foi acompanhado ainda por uma concentração elevada de esgoto, decorrente do aumento dos serviços de alimentação no empreendimento. A carga resultante tornou necessária a ampliação da ETE implementada que neste caso era um wetland de tratamento. É importante destacar que os wetlands têm a capacidade de absorver os mais altos picos de vazão, mas não é recomendado que se submetam constantemente à uma sobrecarga de vazão e/ou a carga.

 

Conclusões referente às vazões e suas variações nas situações descentralizadas

Ao comparar os esgotos coletados por grandes redes com os esgotos sanitários em situações descentralizadas, é importante considerar dois extremos em relação à vazão.

i) Picos altos na vazão horária, que exige aplicar fatores multiplicadores muito maiores que 1,8 sobre o valor médio da vazão. Para ETEs municipais/áreas residenciais até 10 L/s, por exemplo, o fator 3,0 sobre a vazão média pode ser usado como orientação. Para empreendimentos não residenciais, os picos podem ser ainda mais acentuados, dependendo das atividades que se realizam.

ii) Possibilidade da ausência de esgoto ou baixa contribuição durante determinadas horas do dia, dias da semana ou épocas do ano, que pode afetar as áreas residenciais e os empreendimentos, deve-se selecionar a tecnologia mais apropriada que não gere impactos negativos com a ausência de contribuição.

Quanto menor a rede coletora e menos variadas as atividades que produzem o esgoto, maiores as variações na vazão. Estes são fatores que devem ser considerados na escolha e dimensionamento de tecnologias e nas medidas operacionais a serem adotadas.

Em breve compartilharemos nossas experiências referente às tecnologias e medidas operacionais apropriadas para lidar com essa realidade. No entanto, antes de abordar esses aspectos, é essencial discutirmos a composição do esgoto sanitário em situações descentralizadas que também pode diferir do esgoto “comum” e afetar a eficiência do tratamento.

Não percam nossos conteúdos para obter uma visão completa sobre este tema tão importante.

 

Fontes citadas:

(ABNT) NBR 9649 de 11/1986 – Projeto de redes coletoras de esgoto sanitário

(ABNT) NBR12209 de 11/2011 – Elaboração de projetos hidráulico-sanitários de estações de tratamento de esgotos sanitários

Gráfico 2, fonte original: ITWH, Alemanha, 2009: INSTITUT FÜR TECHNISCH-WISSENSCHAFTLICHE HYDROLOGIE (ITWH GMBH), Anwenderhandbuch KOSIM – Kontinuierliches-Langzeit-SImulationsmodell (Stand 2009), Relativ-Tagesganglinien für den Schmutzwasserabfluss, acessível neste link

Gráficos 3 e 4, fonte original: Platzer, C.; Hoffmann, H.; Miglio, R. M.: Long term experiences with dimensioning and operation of vertical flow constructed wetlands in warm climate regions of South America, IWA Specialist Conference on Wetland Systems for Water Pollution Control, 11/2016, Gdańsk, Poland acessível neste link