Projetos inovadores no Peru: a boa prática de comercialização de esgoto bruto para reuso

A reutilização e comercialização de águas residuais recebe um interesse crescente a nível internacional e nacional, porque representa uma importante oportunidade para fazer uso eficiente da água e dar-lhe valor adicional, especialmente em contextos caracterizados por recursos hídricos escassos.

Figura 1 – Lagoa existente da ETE da empresa de saneamento

 

Contexto

Com a escassez hídrica aumentando em muitos locais e a preocupação com as mudanças climáticas, o reuso surge como uma solução para atendimento da demanda por água tratada.

Recentemente estivemos no Peru como parte de um trabalho de consultoria para o Programa Proagua II para apoiar a documentação e sistematização de uma boa prática, onde a empresa prestadora de serviço de água e saneamento (EPS) de um município comercializa parte seu esgoto bruto, ou seja, sem tratamento.

A empresa agroexportadora que compra o esgoto bruto é responsável pelo tratamento a nível de reuso e utiliza para irrigar seus cultivos.

Pelo crescente interesse no tema e pelo caráter inovador do projeto, fizemos este post para compartilhar um pouco mais de detalhes sobre este case.

 

O caso

A boa prática foi realizada por uma empresa que presta serviços de água e saneamento (EPS) a 218.670 habitantes na província de Ica.

O contexto regional de Ica teve particularidades que permitiram tornar essa prática viável. Em primeiro lugar, Ica sofre com uma grave escassez de água, tendo como principal fonte as águas subterrâneas, até agora sobre exploradas, principalmente devido ao desenvolvimento da agro-exportação na região, que exigia quantidades significativas de água para irrigar as culturas, como uvas, aspargos e abacate.

Nesse contexto, o reuso de efluentes representou uma importante fonte complementar de água.

Além disso, a empresa municipal EPS enfrentava problemas por não ter capacidade suficiente para tratar as águas residuais afluentes a sua estação de tratamento. Essa situação deveu-se principalmente a dois fatores:
(i) o aumento do fluxo de esgoto devido ao aumento populacional vivenciado pela cidade, 
(ii) falta de recursos para adaptar a infraestrutura da ETE existente e/ou adequar as medidas operacionais.

A ETE existente contava com quatro lagoas de estabilização e foi projetada para atender uma população de 60.000 habitantes. Em 2017, estava recebendo uma vazão quase três vezes maior que a de projeto.

Na mesma época, foi aprovado no Peru, um marco regulatório que permitiu e regulamentou a comercialização de águas residuais não tratadas.

Assim, o processo iniciou com análise de aspectos técnicos e jurídicos, e a modalidade de comercialização das águas residuais foi o leilão público com opção de aproveitamento do terreno onde se encontra a ETE. O período de comercialização foi estabelecido em 20 anos.

O volume a ser comercializado foi fixado para todo o processo em 285,39 l/s (9.000.000 m3/ano), aproximadamente 50% da vazão que ETE recebia.  

A construção da nova ETE iniciou-se no início de 2020 e iniciou a operação em novembro de 2021. A EPS  já está recebendo os valores referentes ao volume captado e a tecnologia da nova ETE (Figura 2 e 3) da empresa investidora que reutiliza as águas residuais é composta por:

  • Pré-tratamento fino, incluindo remoção de areia de gordura
  • Lodos ativados
  • Membranas MBR.

 

Figura 2 – Foto aérea da nova ETE que trata uma parte (50% do volume atual) do esgoto municipal para reuso na agricultura   

 

Figura 3 – Foto do reator de lodo ativado da nova ETE
 

 

Os benefícios

Os principais benefícios da comercialização de águas residuais não tratadas, nesse caso, são os seguintes:

1. Para a prestadora de serviço de saneamento (EPS):

  • Custos de investimento (CAPEX) e de operação e manutenção (OPEX) economizados;
  • Uma renda anual adicional pela venda das águas residuais;
  • Mais recursos disponíveis para financiar as melhorias nos sistemas de serviço de saneamento;
  • No mesmo tempo a redução da carga das 3 lagoas restantes aumenta a capacidade da ETE existente;
  • Implicando: a redução significativa do impacto ambiental do tratamento e descarte de águas residuais de Ica.

 

2. Para a sociedade e meio ambiente

  • A disponibilidade garantida de águas residuais tratadas de qualidade controlada evita que a superexploração das águas subterrâneas na região se agrave;
  • Ajuda a controlar os riscos à saúde pública associados a falta de água para irrigação e ao uso descontrolado de águas residuais mal (ou não) tratados;
  • Adicionalmente, a população atendida pela EPS, aproveita da reduzida necessidade de aumento de tarifas para o tratamento de esgoto.

 

3. Para os agricultores locais:

  • Recebem com o projeto uma assistência técnica para melhoria de seu sistema de irrigação, contribuindo a um uso mais econômico da água;
  • Ganham a possibilidade de formalização do uso da água remanescente e acordos que garante a compra da sua produção pela empresa agroexportadora.

 

4. Para a empresa agroexportadora

  • Abastecimento de água de irrigação garantido para seus cultivos por 20 anos;
  • Mantem a responsabilidade e controle sobre qualidade de efluente tratado;
  • Pode explorar essa boa prática como propaganda, ESG e imagem verde.

 

Na Figura 4 pode ser observado como fica o efluente tratado na saída da ETE.

Figura 4 – Água tratada: Saída da nova ETE 

 

Possibilidade de replicar

Considerando, a escassez de recursos hídricos, a demanda para a agricultura e a deficiência de recursos da companhia de saneamento em muitos locais, esta experiência pode ser replicada em condições semelhantes.

Por isso, o trabalho de consultoria da Rotária do Brasil foi justamente identificar e sistematizar este exemplo para mostrar os benefícios e aspectos a serem levados em consideração para facilitar sua replicabilidade.

Este tipo de prática promove maior seguridade hídrica e uma nova compreensão dos produtos do processo de tratamento de efluentes como recursos e dentro da abordagem da economia circular.

 

¹ Decreto Legislativo n.º 1280, Lei de Bases da Gestão e Prestação de Serviços de Saneamento e seu Regulamento aprovado pelo Decreto Supremo n.º 019-2017-HABITAÇÃO e todas as suas alterações.